5.7.08

MAIS SILÊNCIO

- ei...
- fala!
- está muito quieto aqui!
- sempre foi assim...- hoje está muito silencioso...
- passa a garrafa.
- sabe... nós não vencemos...- é... você tem razão
- ei...
- fala!
- nunca isto aqui esteve tão quieto.
- sempre foi assim...
- você tem razão. passe a garrafa.
- nós não vencemos.
- muitos não vencem.
- porra! não deveria ser assim.
- sempre será!

A dança

Ele entrou silenciosamente, a cabeça gigante parecia pesar e por isso a mantinha inclinada para baixo. Ou porque simplesmete não desejasse ver em sua volta. O auditório estava lotado, havia mais pessoas que esperava. Eles gritavam, assoviavam, diziam palavrões. O velho sentou-se, bebeu um longo gole de sua bebida e leu um primeiro poema. Um cara na fila da frente disse-lhe um palavrão reclamando do poema, chamau-lhe de bêbado senil. Era oque eles queriam. E o velho lhes deu. Desfereiu-lhes palavrões, cuspiu neles, e a pláteia foi ao delírio. Leu mais poemas, bebeu, mandou a pláteia se calar. No final foi para seu quarto, deitou na cama, pegou sua bebida e deu um longo gole, depois acendeu um cigarro e tragou. Ficou observando a fumaça do cigarro se misturar as luzes da noite entravam pela veneziana.

Se tudo fosse tristeza


Ela queria saber porque Dostoiévski escrevia coisas tão tristes e melancólicas. Ora, eu não soube responder. Juliana sempre foi complicada, eu nunca consegui entendê-la muito bem. Nunca consegui entender mulher alguma. Ela entrou em meu quarto, olhou para as paredes e depois para mim, enquanto eu acendia um cigarro. Sentou-se em minha cama e perguntou-me:
- Porquê Dostoiévski escrevia coisas tão tristes? Olhei para ela e sorri enquanto pensava no que responder.
- Deve ser por causa do frio. Sempre imaginei Dostoiévski como um homem velho, de barba grande e grisalha, vivendo em um pequeno quarto com todo aquele frio. Bebendo vodca, solitário. Acho que ele só poderia escrever coisas tristes vivendo assim - respondi. Ela continuou olhando-me fixamente nos olhos.
- Você não possui poesia. Se fosse você, provavelmente escreveria sobre uma camponesa russa de peitos grandes.
- Talvez...- É! O mundo não precisa de escritores como você - disse Juliana.
Juliana estava certa, provavelmente eu escreveria sobre uma russa de peitos grandes. Se eu conhecesse alguma russa, mas não conhecia.
- Dostoiévski escrevia em um quarto frio e escuro, enchia a cara de vodca, depois colocava o seu casacão e saía pelas ruas na madrugada gelada. Perdia-se em jogos e depois voltava para o seu quarto solitário. Ele ouvia o vento assoviar em seus ouvidos e sonhava com uma bela mulher para aquecer-lhe naquelas noites geladas.
- Quem te contou isso? - perguntou Juliana com um olhar vago.
- Eu imagino que tenha sido assim.
- Você acredita que existem pessoas que nasceram para sofrer, para levar uma vida miserável e triste? Pessoas que sempre serão solitárias, por mais que desejem o contrário - perguntou Juliana.
- Acredito. Acho que sim.
- Às vezes eu quero morrer, tenho necessidade de morrer - disse Juliana.
- Besteira. Tudo ficará bem. Juliana olhou em redor do quarto, deu um belo sorriso.
- Este quarto é um chiqueiro! Está precisando de um toque feminino - afirmou Juliana sorrindo.
- É... Um toque feminino.
- Acho que somos muitos amigos - disse ela.
Juliana levantou-se, caminhou até a janela e lançou um olhar perdido para fora do apartamento. Eu tinha a impressão que Juliana era uma suicida, que um dia ela não agüentaria e acabaria terminando com a própria vida.
- Vou embora! - disse ela.
- Fica mais um pouco. Podemos conversar a noite toda se você quiser.
Juliana sorriu.
- Acho que você é um anjo. Um anjo que eu encontrei.
- disse ela com um olhar terno no rosto. O olhar mais terno que eu já tinha visto na minha vida. Vou ficar aqui esta noite. O quarto ficou iluminado apenas pela luz de um velho abajur vermelho. Entrou uma suave brisa pela janela. A noite foi passando, passando... lenta e calma, até adormecemos.

Lembrança do México

A luz alaranjada entrou como filetes de uma espada samurai através da veneziana. Cortou a penumbra do quarto e deixou aquelas marcas todas no corpo de Sara. Uma mexicana, pensei. Andei até a janela e observei os automóveis na estrada em frente ao motel. Sara virou-se e perguntou:- Pensando em algo?- No México. Em todos aqueles hoteiszinhos de beira de estrada. A poeira levantando sempre que passa um automóvel solitário. Em todos os ladrões, solitários, bandidos, pastores, dançarinas de boates, ambulantes que dormiram neles. Em todos os figitivos que encheram os lençóis de suor. Nas mulheres com chapéu caubói que ali, enlouqueceram algum homem.

14:hs Tarde

Algumas folhas de jornal grudaram-se umas nas outras como asas de borboletas encharcadas. Borboletas bêbadas que tentavam voar e zanzavam trôpegas até encontrarem um poste, e ali ficarem grudadas. Eu observava a cena através da janela de um pequeno apartamento que eu alugava num velho prédio no centro de Porto Alegre. Lá fora despencava uma tormenta infernal. O céu desabava, a água da chuva inundava a cidade formando corredeiras junto às calçadas. As folhas de jornal escaparam das mãos de uma mulher gorda que se movia com a dificuldade de um elefante lodoso. Ela ensaiou uma corrida desengonçada, cuidando para não esborrachar-se no chão. Escorregou um pé, a perna direita, curta e grossa abriu-se como um raio. Os braços moveram-se rapidamente lembrando os de uma marionete, com a ajuda deles a mulher gorda recuperou o equilíbrio e então parou sob a chuva tentando refazer-se do susto enquanto o jornal se desmanchava. O guarda-chuva transparente mal protegia o corpo imenso da mulher.

Príncipe Tsaphkiel

Jussara esperou Carlos entrar no banheiro. Esperou ele ligar o chuveiro e assim que ouviu o som da água avançou em sua carteira. Carlos andava estranho, e ela desconfiada. Revirou alguns papéis e então encontrou um muito dobrado. Quase como um origami. Abriu e leu:
Invocação ao Príncipe Tsaphkiel
Tsaphkiel, Príncipe dos Tronos e chefes dos espíritos soberanos,
Que estais a serviço das forças do mundo,
Divina força cósmica que Tsaphkiel e seus Tronos constituem,
A estrutura da verdade, graça e benefício.Permiti Senhor, que me ajude a aprimorar cada vez mais minha existência;
Permiti que eu tenha paciência na compreensão das Leis Kármicas,
E iluminai-me com sua Sabedoria. Ajudai-me a ser fiel à minha verdade,
que meu presente seja agradável, fácil e proprício,
Para todas as realizações espirítuais e materiais.
Não permitais que eu cometa excessos,Fazei-me Senhor que cuida do mundo,
Peça do equilíbrio e limpeza das forças espirituais.
Guardai-me para que eu possa construirum Universo harmonioso
Para que toda existência seja Luz.Amém.
Jussara devolveu o papel com cuidado, e esperou Carlos com um largo sorriso.

O Monstro Chinês

Cansado o chinês mostrou onde morava para sua nova garota. Um gigantesco bloco de destruição e decadência. Parecia haver milhares de apartamentos ali, grudados um no outro. Um agrupamento de caixas de papelão úmida e claustrofóbica. Ela sorriu timidamente.
- Parece um monstro! - comentou ela, diante daquilo tudo. O breve sorriso surgiu entre seus lábios finos e vermelhos.
- Um monstro, é isto. Nunca pensei assim, mas ele realmente parece um velho monstro cansado. Um monstro feio, cansado, que nos mantêm em seu estômago.
A chinesa voltou a sorrir e os dois entraram calados.

O GIGANTE LÁ DE CASA

Papai sempre foi pra mim um gigante. Eu lembro que olhava pra ele lá de baixo e via suas pernas longas. Muito compridas. Pareciam que iam para o céu. E lá ficava sua cabeça, quase encostando no teto. Acho que se ele esticasse o braço, só um pouquinho, encostava na lua.Eu achava engraçado, aquela cabeça lá em cima. A cabeça do papai. Ele dizia que um dia eu também seria um gigante. Um gigante, não! Uma giganta! Uma mulher com pernas tão compridas quanto as dele. Um dia eu cheguei a sonhar com isso. Que eu era uma mulher gigante, com pernas tão compridas que não caberiam na minha cama. No sonho eu saí para a rua, no meio da noite. Era uma noite cheia de estrelas. Eu gostava de ver as estrelas. Meu pai disse que algumas não existiam mais. Ha,ha,ha! Só meu pai mesmo. Acho que às vezes ele mente, ou quer me enganar. Como podem não existirem se ainda estão lá, brilhando daquele jeito? Bom, daí eu saí para a rua no meio da noite e vi tudo lá de cima. Foi legal! Era diferente e gostoso ser gigante. Então eu lembrei, mesmo sonhando, que poderia tocar na lua. E não deu outra, eu estiquei meu braço que era tão comprido como uma mangueira e toquei na lua. Me lembro que ela era gelada igual a um picolé. Pensei até em pegar um pedacinho dela para mostrar pro papai. Acho que ele ficaria feliz, mas bem na hora acabei acordando e do meu lado estava o gigante me olhando.

E se surgisse um pardal na calçada?

Sérgio pensava em como seria sua vida se fosse Elvis Presley. Se tivesse todas aquelas mulheres ao seu alcance, todas que suspiravam por um simples toque seu. Se tivesse todo aquele dinheiro e seu rosto estivesse sempre estampado nas capas de revistas, se tivesse uma mansão e carros esportivos na garagem. Se tivesse o rosto bonito e que quando dançasse levasse as mulheres ao orgasmo. Sérgio pensava se viveria tomando pírulas para dormir ou se saberia levar as coisas, sem a falta de grana e tendo tudo que desejasse. Sérgio pensava em como seria se fosse chamado de rei. Se ele fosse o REI.Depois sem sabe o por quê lembrou de uma música do Nirvana, e então imaginou como seria se fosse Kurt Cobain. Se de repente começasse a ganhar muito dinheiro, a ter seu rosto estampado em tudo que é lugar, se seu modo de vestir fosse imitado e se todos afirmasse que sua música fosse um novo sopro de vida enquanto ele seguidamente pensasse apenas em morrer. Se milhões de pessoas assistissem seus shows e televisões do mundo inteiro transmitisse a apresentação de sua banda e ele cuspisse na câmera e esfregasse seu pau na cara de todos. Se na verdade ele desejasse não estar ali, que na verdade ele não entendia o que queriam dele, que na verdade ele odiasse e não via sentido naquilo tudo. Sérgio pensava se mandaria sua mulher louca sumir para sempre, se ELE acabaria metendo uma bala na cabeça ou simplesmente fugiria para um paraíso e viveria numa mansão cercado por belas mulheres que lhe dariam banho e lhe colocariam para dormir ao som de suaves cantinas de ninar.Sérgio pensava se de repente enquanto ele andava pela calçada um pardal surgisse em sua frente e se seus olharem se chocassem por alguns segundos. E se então o pardal abrisse o bico e de lá saísse um clarão e como num passe de mágica fosse tudo se tornasse mais fácil.

Velhos caubóis não choram

- Acho que acabou a gasolina!O velho carro parou no meio da noite. No céu as estrelas brilhavam como peidinhos no ar.- Você disse que tinha combustível! Você disse que o combustível daria para ir até o fim! - cobrou Toni.- Eu sei, eu sei...- Agora estamos presos nesse deserto. Estamos perdidos no meio desta estrada.- Eu pensei que daria. Eu pensei que daria para ir até o final - desculpou-se o motorista com a voz embargada.- Estamos fodidos! Estamos fodidos!- Não me culpe! - pediu Jonas.- Isto aqui deve estar cheio de serpentes... Serpentes e lagartos.- Pelo menos não está tão escuro assim... A lua está cheia e o céu está repleto de estrelas.- Foda-se a lua, foda-se suas estrelas!- Pensei que o combustível daria para irmos até o final desta estrada.- Pensou? Pensou? Olha só o tamanho deste deserto! Leva séculos para alguém passar por aqui. Como vamos fazer para darmos o fora daqui?Jonas olhou em sua volta. Viu apenas pedras, sombras e alguns arbustos. Lançou o olhar ao longo da estrada comprida como uma longa serpente infinita que se perdia no horizonte. A estrada desaparecia no meio da escuridão. Jonas olhou para o velho carro morto no acostamento da estrada. Era uma ossada, uma carcaça, um ser pré-histórico vencido pelo tempo. Não havia mais força, apenas pedras, arbustos, serpentes e lagartos como companhia.- Ei cara, você não está chorando, está? - exbravejou Toni.- Desculpe!...- Você é um homem... VOCÊ É UM HOMEM!- Desculpe! - murmurou Jonas.- Porra, e agora? Pare de chorar!...Jonas continuou chorando baixinho enquanto seu companheiro foi mijar ao lado da estrada. Jonas soluçou e passou a mão no rosto para enxugar as lágrimas que escorriam e deixavam rastros como lesmas.- Você atrairá as cobras mijando aí - disse jonas com a voz entrecortada.- O quê você está falando?- Você nunca ouviu falar? O som de mijo atrai cobras - afirmou Jonas. Seus olhos ainda vermelhos e úmidos brilhavam.- De onde você tira essas idiotices?Jonas baixou a cabeça e perdeu o olhar no chão seco coberto por pedregulhos. A noite estendia-se linda sobre os três. O carro era um ser comprido, de longa cauda que lembrava a de um enorme peixe. Um monstro aquático constituído de ferro, perdido num deserto coberto de estrelas, rodeado por serpentes, lagartos e arbustos resistentes como as pedras. Tudo parecia resistente, forte, moldados para resistir as maiores adversidades. Menos Jonas.
- Não diga que chorei - pediu Jonas.
- Tudo bem... Não direi.
- Aquele velho caubói que conhecemos disse que homens não choram - explicou-se Jonas. Ele contou-me que um homem deve ser valentão e que apenas mariquinhas choravam. O campanheiro de Jonas encostou-se no velho carro e praquejou novamente, depois puxou do seu interior um grande e viscoso catarro e lançou-o com força. Depois acendeu um cigarro, tragou e expeliu a fumaça.
- Merda! - Nós somos durões, não somos? - perguntou Jonas.
- Claro. É claro que somos - confirmou Toni.
- É isso aí! - concordou Jonas num tom entusiasmado. Somos como o velho caubói. DURÕES! - Chorar é para as mariquinhas. Apenas as mulheres e as mariquinhas choram. Nós somos DURÕES - completou Jonas, com os olhos cheios de lágrimas.
No céu as estrelas ainda brilhavam como peidinhos no ar.

O Velho Trem Fantasma

De vez em quando vou para os fundos do pátio e fico sentado observando aquelas coisinhas piscando lá em cima e esperando o som. Sempre no mesmo horário, sempre no meio da noite. Acendo um cigarro e olho em volta, o lugar é cercado por muitas árvores e campos e tudo fica longe de tudo e nas noites de verão os insetos zunem como loucos.Lembro da bruxa velha que mora no fim da rua – e caralho, as ruas aqui são longas como um rabo de dragão -, entranhada numa casa centenária de tábuas desbotadas e cheias de musgos que expiram umidade pelos poros. Foi quando ela me falou, enrugada como uma uva seca sobre os insetos. De presente me deu um pote de cataria, uma espécie de inseto que triturado é tido como afrodisíaco e todas as mulheres que enlouqueceram quando misturei o pó em suas bebidas e as noites foram longas.Então meus pensamentos são cortados pelo som do velho trem que eu tanto aguardava. Parece um trem fantasma, gosto de ouvi-lo rasgando a noite e rugindo. Sempre aquele som, aquele trem de carga que vai não sei para onde. Continuo ouvindo o trem fantasma que passa como se tocasse uma melodia perdida no tempo. Um trem fantasma que rasga a noite, imperturbável como um monstro cansado. Eu aguço os ouvidos apenas para ouvi-lo rugir.

Nunca seríamos como aquele cara que dançava sobre o palco de tábuas

O cara subia naquele palco de tábuas e quebrava o quadril, as pernas indo e vindo alucinadamente. A voz fazendo as meninas sonharem, porra! As garotas cantavam, gritavam, urravam. Ninguém dançava daquela maneira, depois todos garotos também tentavam fazer o mesmo. A poeira levantava no meio da histeria. todos tentando a mesma coisa. Ele com aquela cara de bebê e elas adoravam. Todas desejavam trepar com ele. Tudo ali, naquela cidadezinha de merda. Então ele sorria e algumas tinham orgasmos, e nós olhando, putos da cara. As garotas que queríamos baixar as calcinhas, as garotas que ilustravam nossas punhetas, estavam todas lá. E todas queria um só pau. Porra, o cara era o rei. A voz ecoava, lambuzava, trovejava. As conções fazíam as meninas sonharem. Depois ele foi embora e começou a aparecer nas capas de revistas e na televisão. Os caras ainda invejavam, as garotas ainda sonhavam em ir para cama com ele. Nós sabíamos, éramos de outro time. Nos tornaríamos escritores, açougueiros, vendedores, advogados. Nunca aquele cara e a merda é que sabíamos.

Um Monte de Nada

Ligou o carro sob aquele sol infernal e deu a partida no velho Fusca 78. "Atravessar desertos é uma merda. Um monte de nada", pensou. Colocou uma fita-cassete e com o volume ao máximo ouviu Born To Be Wild. Jack o quebrou ao montar aquela motocicleta e sair por ai com o vento batendo-lhe no rosto. Stepen Wolf o fez pensar que poderia ser um franco atirador.Kerouac embriagado, atravessando a América, dormindo com mariposas e anotando seus sonhos enquanto em algum quarto pequeno, triste e decadente, um velho escreve contos sujos para a Xota. Garrafas de cerveja vazias se amontoam num canto e tudo se embriaga de solidão, tédio e desespero.O Fusca dá o máximo de si. O pedal do acelerador beija o assoalho empoeirado do carro. Porto Alegre agora é uma miragem que desapareceu no horizonte como um fantasma capenga.Quando criança, antes mesmo de assistir Jack e seu parceiro com suas motocicletas em estradas sem fim, antes de ouvir Born To Be Wild, Carlos ouvia estórias sobre os desertos gaúchos. Depois de ouvir tudo aquilo, sobre os homens que morriam de sede, que se perdiam e eram picados por serpentes sob um sol escaldante, Carlos ia para a janela de sua casa com mil imagens e pensamentos em sua cabeça. Lá fora vaga-lumes, grilos, besouros e outros insetos pareciam enlouquecidos na escuridão. Carlos observa os insetos, as folhagens, a grama verde, os campos e as árvores que cercam tudo. Tudo inacreditavelmente verde, úmidos do orvalho da noite e gotejando vida por todos os lados. Carlos não podia acreditar nos desertos gaúchos, mas nunca conseguiu esquecê-los.O motor do Fusca roncando grotescamente sob o chão árido do deserto. O sol queimando a lataria do carro, a retina dos olhos de Carlos, os pedregulhos, a rala vegetação. Pequenas pedras saltavam para os lados como se tivesse vida enquanto Carlos zunia com seu automóvel. Horas se passaram e Carlos continuava sem parar. "Um monte de nada", voltou a pensar olhando para a paisagem crua.Sem saber o motivo Carlos sentiu vontade de dar um cavalo de pau no meio daquele deserto. "Ninguém atravessa um deserto sem dar um cavalo de pau", pensou Carlos com a garganta seca. Carlos acelerou o que pode, o velho Fusca rosnou como um valente monstro cansado, o toca-ficas esgarçando Born To Be Wild e tudo sacolejando e poeira e pedregulhos voando e ele com a mão grudada no freio de mão. Então o caralho do Fusca valente girou, girou, girou e tudo rodava rápido demais aos olhos de Carlos e uma nuvem de poeira engoliu tudo. Com um forte solavanco tudo parou de girar, menos a cabeça de Carlos e a poeira invadiu seus olhos e garganta e ouvidos e então ele deu uma grande gargalhada e olhou para a noite que despencava no horizonte daquele fodido deserto gaúcho.

A mulher do Calendário

Em uma das mesas dois homens bebiam Coca-Cola com cachaça. No balcão outros homens bebiam suas cervejas e fumavam e olhavam para as paredes, para o vazio ou para sei lá o quê eles estavam vendo com aqueles olhares perdidos. A noite estava clara como nunca e milhares de estrelas piscavam e alguns caminhões passavam zunindo e seus faróis pareciam estrelas nas estradas como as que piscava no céu.Martin entrou e olhou para a folha de calendário pregada na parede com a foto estampada de uma bela mulher seminua, seios fartos à mostra e olhos num azul claro que prometia o paraíso. Então ele sentou ao lado de um dos homens no balcão e não deu importância para ele. Martin estava se lixando para o cara.Seu Chevy estacionado lá fora parecia um carro fantasma abandonado. Martin pediu uma cerveja e um maço de cigarros. Aguardou com um vago olhar para a foto no calendário. O homem ao lado olhou para ele e para o calendário que estampava a foto da mulher de olhos azuis.Deu um sorriso e disse: “Com uma dessas eu foderia a noite inteira”, Martin não ligou. E o cara fechou-se numa carranca. Martin bebeu um gole de sua cerveja e lembrou da garota e dos seus peitos e de seus olhos e de tudo mais. Dela sorrindo enquanto preparava o jantar, sem antes perguntar se ele desejava batatas-fritas e ele sempre respondia que sim e ela acabava sorrindo novamente. Martin lembrou de como ela dormia e das noites que passavam em claro e dos quartos escondidos e das luzes pardas e das pessoas circulando lá fora sem saberem de nada.Martin acendeu um cigarro e tragou e bebeu um novo gole de cerveja. Achou que a cerveja estava muito boa e teve uma agradável sensação com aquilo. Tornou a olhar para o calendário e para a foto da mulher seminua e lembrou dos dois juntos e num suspiro surdo conformou-se em vê-la partindo em um daqueles caminhões que tinha faróis que pareciam estrelas na estrada.

Eu Tinha Que Realmente Estar Lá?

Ela estava usando uma saia de seda roxa. Muito bonita e, caralho... Eu tinha que realmente estar lá, justamente naquele momento? Ela simplesmente abaixava-se e pegava algum livro. Tinha uma porção deles por lá, queimados e espalhados por toda parte. E ela vasculhava entre os destroços tentando recuperar algum. A velha casa tornou-se uma Bagdá em escombros, Estanlingrado, Berlim. Nada além de cinzas, destroços e desespero.Ela tentava salvar alguma coisa e com as mãos sujas mantinha o semblante sério e compenetrado. Ouvi um profundo gemido vindo do fundo de sua caixa torácica e senti todo aquele tremor e tristeza percorrer seu corpo. Disseram que o incêndio foi rápido como uma lufada de vento e num fechar e abrir de olhos a casa tinha se transformado em uma gigantesca bola flamejante, e tudo foi sendo engolido por ela.Ao vê-la me aproximei como se seu corpo fosse um ímã que atraía meu corpo de ferro, e sendo assim, nada eu poderia fazer senão me deixar levar. Percebi suas mãos queimadas que seguravam um livro ou o quê sobrou dele. Do outro lado da rua dois homens com roupas e capacetes vermelhos conversavam ao lado de um caminhão também vermelho. Um grupo de meninos olhavam excitados e donas de casa tagarelavam sem parar dizendo algo sobre um botijão de gás que era uma verdadeira bomba e o estrondo que deu.Ninguém ali parecia muito interessado naquela garota que vestia uma saia de seda roxa e catava os restos entre os escombros. Nem em suas mãos queimadas, nem em seu corpo de ímã que atraía o meu corpo de ferro.